sábado, 26 de maio de 2007

O PROBLEMA ESTÁ NA MULHER

Recentemente debrucei-me sobre a dinâmica de um hospital neste caso de uma maternidade e passaram por mim dois sentires diferentes da mesma realidade.
O primeiro diz respeito ao funcionamento das unidades sem parturientes. Verifiquei que as unidades neste contexto funcionam maravilhosamente bem. Os diferentes departamentos funcionam entre si sem problemas, as pessoas entendem-se bem, não há gritos, correrias ou outros estados de loucura afim, há tempo para ir ao bar e comprar uma revista da Caras® ou da Lux® (pareceu-me serem as mais consumidas), pode-se ouvir atrás da descontracção a necessidade de se ir comprar o que falta para o stock de casa estar completo. Enfim, tudo está perfeito, funcionando às mil maravilhas e não há conflitos institucionais.
O segundo surge quando, por força de uma determinação, entra uma parturiente. É então que tudo se modifica como se por ali passasse um tufão. Por força da obrigatoriedade de se proceder ao cumprimento das normas e actividades protocolarizadas (tricotomias, punções, clisteres de limpeza rectal, monitorização cardiotocográfica, colocar soros, etc.), todo o ambiente hospitalar e humor dos profissionais se modifica abruptamente (claro que nem todos entram de imediato neste estado de tensão e outros que se conseguem manter afastados durante todo o período laboral). Começa o curropio das pessoas, os decibéis das falas sobem significativamente, os apitos e alarmes disparam freneticamente como que ajudando à festa instalada repentinamente. Aumentam as necessidades das pessoas em saber de minuto a minuto como “está a situação, para depois saber o que fazer”, começam a emergir dos diferentes corredores magotes de pessoas para “fazer o que tem a fazer”, decifram-se os registos e diagnosticam-se patologias, caiem arrastadeira, ligam-se incubadoras (para prevenir qualquer coisa), os telefones estabelecem um combate feroz com os ouvidos de cada um dos participantes. A esgrima entre aqueles que se julgam ou querem ser mais importantes do que o outro inicia-se. Os umbiguistas reclamam territórios e a agitação acentua-se. Até que por fim na azáfama do parto, entre a decisão de uma ventosa ou de um fórceps, há que posicionar a “doente”, há que aconchegar o acompanhante num cadeirão, há que calar apitos e há que actuar. A agitação é enorme e todos se tentam posicionar o melhor possível no minúsculo espaço acotovelando-se em cima da parturiente, cada um dando a sua ordem como se aquela fosse determinante para o sucesso do nascimento.
Depois do bebé sair do ventre da mãe, há que cozer, limpar, enxugar tudo que por um acto de magia ficou envolto num mar misto de solutos e sangue. O bebé chora, é virado e revirado para ver se está tudo bem. Enfia tubo, tira tubo. Espetam-se agulhas. Põem-se gotas. Enxuga-se a cara, as pernas, o tórax, as costas e deixa-se debaixo da fonte de calor (para não perder calor).
Até a senhora sair para a unidade de puerperas, regista-se uma circulação de pessoas acompanhadas por amontoados de papéis, verificações das anotações, dos registos, dos dados obtidos, para não se perder nada (se por acaso for para tribunal temos que nos safar). Juntam-se todas as peças do puzzle e finalmente acomoda-se a senhora numa estreita maca e transfere-se rapidamente para a unidade de internamento porque a balbúrdia já foi muita. Há suspiros no ar, há testas luzidias como resposta à intensidade da luz do candeeiro cirúrgico que impiedosamente castigou aqueles vultos com o seu calor, há o cair de corpos esgotados num cadeirão.
Ah! falta falar da mãe/mulher que acabou de ter um bebé. Mas é engraçado porque não me ocorre dizer nada sobre ela. Também verifiquei que ela não foi valorizada para este acontecimento que devia ser dela. Só vi imporem-lhe normas e procedimentos e importarem-se com ela, quando ela tinha o dever e a obrigação de satisfazer o ego e a vaidade de quem lhe fez o parto e daqueles, muitos, que assistiram aquele que lhe fez o parto. Do resto, não ouvi falar dela, nem dos seus medos, anseios e preocupações. Não me lembro de ver profissionais a falarem com ela com a delicadeza e sensibilidade que este momento requer, de saber o que é que ela precisa, de a esclarecerem devidamente dos prós e muitos contras que a tecnocracia hospitalar pode trazer ao nascimento do seu filho. Não me lembro de haver alguém a doular esta mulher, apesar de defenderem esta prática em congressos e reuniões cientificas.
Enfim. Posso então concluir, e desculpem-me esta extrema modéstia, que o problema para as maternidades funcionarem mal é da mulher que ali foi parir, porque se ela não estivesse ali, tudo e todos funcionavam perfeitamente, como me deu a entender pelo que vi. Dá que pensar não dá?

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Realmente dá mesmo que pensar

Hoje tive a oportunidade de ver uma reportagem efectuada por um canal de televisão e que se intitulava "condenados à nascença".
Dos quatro casos apresentados, só foi dada a versão dos "lesados", isto é, das famílias que sofreram com o desfecho da situação, contudo verificamos que há coisas em comum em todos eles:
Os partos aconteceram no hospital e sem que nada fizesse antever com finais dolorosos e de tristeza profunda para as famílias envolvidas. Verifiquei que em nenhum dos casos relatados se configurava com situações enquadradas na gravidez e parto de risco (exceptuando eventualmente um dos casos).
Então porque é que aconteceram? Não sei. Mas há variáveis que podem ser consideradas fruto da obstetrícia actual e que já foram alvo de algumas reflexões anteriores neste espaço.
Entre estas variáveis verificámos que em todas as situações (especialmente as três primeiras) se deu a entender que foram trabalhos de parto induzidos e parece (e esta é uma dedução exclusivamente minha) que pelo menos em três deles deve ter havido analgesia por bloqueio epidural (esta dedução vem dos relatos feitos em que as mulheres referem ter sido culpabilizadas por não terem colaborado no parto, isto é, que não tinham feito as forças expulsivas adequadas no período expulsivo. Este mecanismo está na maior parte das vezes associado à analgesia por bloqueio epidural e ficou descrito o porquê na reflexão anterior. A analgesia epidural é actualmente uma prática comum dos nossos hospitais, muito por culpa da continua desinformação que se mantém nas mulheres e daí ser responsável em grande parte doas casos dos 60 a 70% de partos distócicos, ventosa, forceps e cesariana).
Vejamos então um pouco mais em pormenor os relatos.
A primeira situação. Uma indução às 40 semanas, num dia em que a médica estava de serviço. Às 20 horas e 30 minutos o bebé, com possível esgotamento das reservas energéticas, consequência provável de um trabalho de parto acelerado (deduzo eu) pela utilização da ocitocina, entra em falência generalizada e de seguida em sofrimento. Tentaram estimular as forças expulsivas para acelerar o parto e foi por esta altura que a senhora refere, que ouviu comentários que a culpabilizam por não ter colaborado mais activamente no parto (o que me leva a deduzir deter havido bloqueio epidural). A médica só chega depois das 21 horas (1/2 hora após o inicio dos episódios de sofrimento fetal, porque estava a jantar em casa, fora do local de trabalho apesar de estar de serviço) e então faz um forceps e a criança (Gonçalo) fica com lesões permanentes e irreversíveis, por consequência de anóxia cerebral prolongada.
Na segunda situação não ficou bem esclarecido o motivo pelo qual é que a senhora foi mandada para o hospital, sabemos que foi por indicação da médica de família que durante a vigilância da gravidez tinha previsto ou deduzido da necessidade de uma cesariana. Através do relato, somos levados a crer que houve uma indução oral (tomou um comprimido e foi mandada para casa). Após algumas contracções em casa, ocorre a ruptura da bolsa amniótica, o que a leva novamente ao hospital algum tempo mais tarde. Dos factos relatados relativamente ao parto propriamente dito, a senhora referiu-nos que foram aplicadas por diversas vezes as mãos, que não resultou, depois a ventosa, que também não resultou, depois o forceps, que também não resultou (deduzo eu por a apresentação fetal se encontrar em patamares muito altos. Sabe-se que a aplicação de instrumentos em níveis pélvicos altos, na maioria das vezes, só é possível em determinadas condições de analgesia) e acabou numa cesariana. Resultaram destes procedimentos, a morte do filho, múltiplas lesões vaginais por traumatismos obstétricos e consequente infecção vaginal prolongada. Diagnóstico, asfixia grave com traumatismo obstétrico.
A terceira situação, num hospital, um trabalho de parto arrastado (indução sem haver condições cervicais para isso?), com falência fetal (?), do que resultou a aplicação de forceps e esmagamento craneo-encefálico da criança, hemorragia cerebral e consequente morte. Segundo o relato, esta situação decorreu 12 horas após a ruptura da bolsa amniótica (o que não é muito, em termos obstétricos) e como consequência de muitas manobras obstétricas para extrair o bebé, que não resultaram, e também da pouca colaboração materna durante o período expulsivo (epidural?), até que um médico (o único a responder actualmente por homicídio por negligência), decide fazer um forceps alto (permitido pelo bloqueio epidural?), do que resultou o esmagamento craniano.
A última situação, esta sim, há uma componente patológica diagnosticada posteriormente de sepsis, daí um desvio da normalidade da gravidez e parto e de que resultou, segundo o testemunho do pai, num diagnóstico errado, terapêutica errada e a consequente morte da mãe e da criança. Este episódio foge claramente ao prototipo de prática obstétrica interventiva e tecnocrática no trabalho de parto e parto. Mas mesmo assim com um desfecho lamentável.
Através desta reportagem há vários denominadores comuns, todos são hospitalares, excessivo controle e decisões exclusivamente médicas, altamente interventivos e com graves desfechos. Fica no ar uma outra questão: e aquelas mulheres que sofreram e sofrem ainda com as consequências das intervenções, manipulações e mutilações resultantes do intervencionismo no parto? Quantas mulheres se calaram e com resultados penosos para a sua pessoa? Quanta sofrem ainda hoje de morbilidade pós-parto?
Tenho vindo, através de reflexões, alertar para alguns tipos de consequências maternas e/ou fetais resultantes de práticas médicas obstétricas que desrespeitam a fisiologia, o tempo e o desenvolvimento de um trabalho de parto e parto. A experiência acumulada por vários anos me tem vindo a demonstrar isto claramente. Daí o meu sentir da necessidade de continuar este combate contra a excessivo intervencionismo no nascimento.
Dá que pensar, não dá?

sábado, 5 de maio de 2007

Episiotomia

A episiotomia define-se como uma incisão (corte) cirúrgico no músculo perineal (o músculo que compõe o que se designa por soalho vaginal e que por isso divide a vagina do recto) e eventualmente no músculo elevatório do ânus.
Este corte começou a ser usado por rotina nos partos durante o século passado e hoje é como um procedimento indispensável para quem parteja. As desculpas ou indicações para este procedimento cresceram ao ritmo da necessidade da sua justificação. As mais usadas são: facilitar a saída do bebé; diminuir o tempo de encravamento vaginal do bebé; facilitar as manobras obstétricas; evitar lacerações descontroladas.
Mas vejamos algumas coisas associadas a este simples mas mutilante corte genital feminino. Ele é feito à investida cega de uma tesoura cirúrgica que no seu caminho dilacera tudo o que se lhe atravessa na frente, sem excepção, e corresponde em geral ao tamanho das lâminas da tesoura utilizada e caso não se insista no corte.
Penso ser importante neste momento referir que a Organização Mundial de Saúde sustenta que esta prática não traz benefícios materno-fetais e que deveria ser de todo evitada na prática obstétrica. Não há até ao momento nenhuma prova cientifica ou pesquisa académica que justifique ou aprove esta técnica por rotina.
Nas nossas maternidades/hospitais a taxa de execução de episiotomias é de 99%. Acredito que este número em parte se justifica pela falsa percepção de quem a faz, pensar que dessa forma assume o poder da prática cirúrgica (corte e sutura). Acredito também que estas taxas estão associadas ao modelo académico de formação, todo ele centrado no modelo tecnocrático focalizado no medicamento, máquina e cirurgia, sendo por isso parte integrante dos objectivos académicos, o fazer a episiotomia e sua reparação cirúrgica. Não há nos nossos dias e nas escolas médicas a tradição e digo o saber da arte de partejar sem interferência técnica.
Mas verdadeiramente o que é que acontece com a episiotomia? O músculo perineal, o mais atingido com esta prática, tem uma função extraordinária para a mulher. Ele tem interferência directa na mobilidade, no coito e no parto, entre outras funções acessórias. Quando este músculo é cortado durante o parto deixa de fazer uma das principais funções que é o da orientação fisiológica da cabeça do bebé para o nascimento e permitir suavidade na respectiva libertação.
Já durante o processo de cicatrização, no pós-parto, ele limita a mobilidade da mulher, causa dores continuas e limita o posicionamento em especial no sentar e a execução de tarefas relativamente simples como seja o vestir, calçar e o lavar. As dores deste processo de cicatrização são crescentes ao longo do tempo, acompanhado por um processo inflamatório intenso, por isso é que as mulheres manifestam um desconforto crescente à medida que os dias se vão passando. A cicatriz resultante do corte perineal, muitas das vezes desenvolvem cicatrizes coloidais, transforma-se então numa inimiga da mulher. Não só irá interferir nos partos posteriores limitando a distensão perineal e por isso torna inevitáveis as lacerações e/ou novas episiotomias, assim como são um dos principais responsáveis pelas dispareunias (dores às relações sexuais), por limitação da distensão perineal facilitadora do coito e pela lesão/compromisso dos ramos nervosos sensitivos, tornando-se por esta via castradora da intimidade e do relacionamento do casal.
De entre as estruturas que também poderão ficar afectadas com a episiotomia é a enervação sensitiva dos grandes e pequenos lábios vaginais e até do clitóris. Isto porque a enervação destas estruturas deriva do nervo pudendo que por sua vez deriva das ramificações sensitivas lombares. Assim, a sensibilização das estruturas genitais exteriores vem da "árvore" ascendente do nervo pudendo. Ora, quando da episiotomia, e em especial se esta for mais extensa, poderá ocorrer a secção deste nervo o que pode originar desde adormecimento parcial até à falta de sensibilidade genital, do lado correspondente da episiotomia. No fundo, em termos limite, podemos dizer, que muitos de nós tem uma forte tendência para subscrever as petições mundiais contra as mutilações genitais femininas que acontecem em algumas regiões ou tribos africanas, pois o que acontece aqui com a episiotomia é que se poderá estar a proceder também a um tipo de mutilação genital, contudo com a desculpa de que foi para "ajudar o parto" (quantos de nós já não ouviu relatos de mulheres que ficaram com parestesias genitais permanentes (formigueiros) após o parto? talvez agora se compreenda melhor).
Outra das estruturas que poderão ser afectadas pela episiotomia, são as estruturas vasculares, veias e artérias, que poderão assim originar hematomas internos e consequentemente aumentar a compressão do perineo e assim aumentar as dores e desconforto da mulher. Para além de que o sangue acumulado é um excelente alimento para as bactérias e por isso promover o surgimento de infecções perineais.
Por falar em infecção, esta também pode ser mais uma das consequências da episiotomia. Através do corte, abre-se por assim dizer um caminho às estruturas internas. Ora, os micróbios que estão na pele, e que ali vivem bem porque é o seu habitat natural, quando se podem deslocar para terrenos internos, aí podem-se desenvolver, tornarem-se patogénicos (capazes de desenvolverem doença) e assim criarem abcessos ou infecção generalizada daquela zona.
De entre as estruturas acessórias dos genitais femininos externos, encontram-se, igualmente, as glândulas de Bartholin, que são responsáveis pela lubrificação da vulva e vagina externa, para assim facilitar a relação sexual. Quando da realização da episiotomia pode haver também a secção e corte desta glândula, o que pode comprometer a sua funcionalidade posterior para além de a tornar susceptível para o desenvolvimento de infecções e assim aumentar-se a probabilidade de se repetirem as bartholinites.
Referi anteriormente que uma das desculpas utilizadas para a execução da episiotomia é de evitar as lacerações vaginais. Ora, se durante o nascimento ocorrer a referida rasgadura, e por vezes ela acontece, estas são normalmente mais pequenas, evitam e contornam as estruturas internas de maior resistência como seja o caso de músculos, tendões, glândulas e vasos sanguíneos e assim, por serem mais pequenas, também são de fácil reparação. Convém igualmente referir que a posição ginecológica adoptada nas maternidades/hospitais para parir não é nada facilitadora para o nascimento de uma criança, e neste capítulo, a probabilidade de ocorrerem lacerações com esta posição é maior e são também normalmente mais extensas.
Para finalizar, e em sequência da publicação anterior, uma mulher com epidural que por sua vez está castrada nas suas competências para parir e como se viu tem maior probabilidade de ter um parto distócico, ventosa e forcéps, também aqui se verificam as consequências. Para além da necessidade de utilização de instrumentos por notória falta de colaboração materna, ela também permite episiotomias mais extensas e profundas, exactamente porque estando sem dor, numa posição menos fisiológica e com a necessidade de se colocarem instrumentos de ajuda ao parto, o técnico irá proceder a uma extensa episiotomia exactamente porque precisa de abrir o canal de parto para a passagem da cabeça do bebé e ainda dos instrumentos acessórios (e mesmo assim verificam-se ainda o surgimento de lacerações atípicas, resultantes da tracção e rotação mecânica que é feita para a libertação da criança. Lacerações estas distribuídas por diversas partes da mucosa vaginal, uretra e recto).
Neste sentido falar de episiotomia não é só falar de um corte. É haver a necessidade de reflectir sobre a influência que esse corte pode ter para a saúde da mãe. Dá que pensar, não dá?