domingo, 23 de dezembro de 2007

Canto da Sereia

Todos se lembram de muitas das lendas que nos contavam como forma de acelerar o adormecimento e que povoam ainda hoje o nosso imaginário. Dessas, o canto da sereia, remetia-nos sobre forma de aviso para os perigos dos encantamentos. Quem nunca ouviu contar histórias de marinheiros que ao escutarem o canto da sereia se deixavam embalar pelo mesmo e assim eram conduzidos de forma hipnotizada para as profundezas dos oceanos.
Os leitores desta reflexão poderão colocar então a seguinte pergunta: o que tem o canto da sereia a ver com esta questão da obstetrícia e do parto em si? Como resposta pretende-se criar a alusão relativamente aos perigos escondidos pelos belos encantos que se ouvem sobre a facilidade, leveza, analgesia e descontracção do trabalho de parto e parto nos contextos actuais, mas fundamentalmente em relação às supostas seguranças oferecidas pelos profissionais relativamente às instituições, procedimentos e aparelhagens.
Hoje, a mulher, quando grávida, começa a ser seduzida por um discurso todo ele muito sustentado na agradabilidade acústica traduzida pela utilização dos “inho(s)” e “inha(s)”. Expressões como: “uma ajudinha”, “um jeitinho”, “um sorinho”, “uma piquinha com uma agulhinha”, “uma horinha pequenina”, etc, fazem parte do discurso standartizado na relação que se estabelece entre os profissionais e as grávidas desde o primeiro encontro. De forma quase natural e também necessária são omitidas algumas referências a desvantagens e riscos dos contextos abordados.
O encantamento que este tipo de discurso produz na mulher grávida, leva-a a aceitar sem discussões e inquietações os inúmeros procedimentos e intervenções praticados pelos profissionais das instituições que por sua vez as conduzem para uma viagem com possíveis consequências. Algumas de tal forma graves que marcam aquela mulher, ou bebé ou ambos para o resto da vida. O encantamento do canto, muito ao estilo do canto da sereia, transporta a mulher e respectiva família para procedimentos e intervenções cada vez mais agressivos que podem culminar com desfechos frustrantes quer para a mulher, que vê defraudada, em muitas das situações, o sonho do nascimento do seu filho num ambiente rodeado de paz e tranquilidade, quer para os profissionais, traduzidas pelas altas taxas de partos instrumentados através de ventosas e fórceps ou de partos cirúrgicos designados por cesarianas. Com partos altamente intervencionados, o canto da sereia continua a impregnar a consciência destas mulheres para a desculpabilização dos actos então praticados e das suas consequências sustentando-se na dramatização do parto como evento. Já nem me refiro à desconsideração que à posteriori estas mulheres sofrem através da frieza das relações institucionais.
Daí esta necessidade sentida, de estalar os dedos à mulher embalada pelo encantamento do canto e fazê-la despertar para a tomada de consciência das suas opções e aceitações no sentido de não se entregar de forma gratuita às múltiplas decisões tomadas por outros intervenientes que não os dela e da família para o nascimento daquela criança.
Com esta reflexão surge a pergunta: deve-se então acabar com as instituições obstétricas? A resposta obviamente é NÃO. E não porque elas devem coexistir em parceria com o desenvolvimento técnico-cientifico e estarem devidamente equipadas e apetrechadas através da tecnologia e profissionais capazes e competentes para darem a resposta efectiva, rápida e adequada para aquelas gravidezes que por um ou outro motivo fogem dos parâmetros considerados fisiológicos ou normais e assumem um perfil de patogenecidade ou doença. Neste âmbito, e só neste, devem contar com a destreza e competência técnica e profissional de todos os quantos ali trabalham e devem contar igualmente com o auxílio da tecnologia no sentido de avaliações contínuas das alterações surgidas. Assim, deve-se evitar a transformação daquilo que é normal em doença, evitar a visão centralizada nos órgãos humanos cada um por si e deve-se sim olhar para a pessoa como um todo, um ser biológico, holistico e carregado de profundas marcas sócio-culturais.
Como complemento de leitura deste apontamento, proponho a leitura das reflexões “epidural” e “indução” que também constam deste blogue.
Tenham por isso atenção e evitem o canto da sereia.

5 comentários:

Cristina Gomes disse...

E o que é mais incrível é como esse "canto de sereia" continua a surtir efeito e como a generalidade das pessoas nem se dá ao trabalho de tentar perceber o que realmente está por detrás dessa melodia...

Mas o que vale é que há pessoas que dedicam a sua vida a tentar fazer a diferença. E outras que fazem a diferença, vivendo-a.

Bem haja!

PJP disse...

Pfff, é de facto incrível como a nossa cultura é tão fortemente tecnocentrada e como o indivíduo comum é capaz de colocar, de forma tão acrítica e ignorante, as decisões dos mais diversos meandros da sua vida, desde logo o nascimento e a própria saúde, nas mãos de profissionais que tantas e tantas vezes procuram mais prestígio e alimentar o seu ego do que propriamente fazer algo de bem pelo mundo e pelos outros seres.
Felizmente há excepções, e elas são cada vez mais valiosas e importantes para fazer a diferença. Um parto em casa faz toda a diferença, e diferença mais do que se procurar vive-se e é-se ;O)
Abraços grandes e parabéns pelo excelente post ;O)

Cristina Gomes disse...

E a propósito de tudo isto, e no desejo de partilhar a minha experiência daquilo que foi viver um parto magnífico, e bem longe do canto da sereia, espreitem o meu blog

www.just-a-feeling.blogspot.com

Grão de Amor disse...

Que belo regresso, adorei o seu post...
Parabéns

Vitinho disse...

Passando pelo seu blog.
Continuação de bons post's.
Um Abraço.
Vitinho